Um blog de todos nós. Afinal, pintelhos todos temos... Uns mais, outros menos...

terça-feira, julho 13, 2004

Sociedade

Não. Enganaram-se.
Esta não é mais uma definição do Pintelho. Este não é mais um daqueles posts que, sob orientação psicanalítica, exploram um conceito. Este post é sim, somente, um desabafo.
Um desabafo que preciso de escrever, de partilhar convosco, porque há nesta sociedade católica a defesa de uns valores um pouco (um grande pouco) esquisitos. Pelo menos aos olhos de um ateu.
A história, triste, passou-se ontém, com um jovem (aparentemente) igual a tantos outros, a caminho de casa, enquanto descia uma das principais avenidas da cidade de Braga.
À hora do costume, ao final da tarde, o invisual do costume, com o ponteiro do costume, descia a avenida em direcção à sua paragem do autocarro. As pessoas que passavam olhavam-no com ar de pena, algumas com ar de estranheza. Outras afastavam-se, como se a cegueira fosse contagiosa. Outras ainda olhavam, enojadas, aquele homem cujos olhos são inúteis, como se de um animal sem rumo se tratasse.
Quem conhece Braga sabe, certamente, que a Avenida a que me refiro é cortada, em certo ponto, por uma via rápida. Nesse ponto existem duas passadeiras perigosas, cujos semáforos não estão bem regulados, passando alguns carros ainda, após o sinal dos peões mudar para verde. Essas passadeiras, para cúmulo, não estão alinhadas com o resto da avenida, fazendo com que quem as atravessa, se seguir uma linha rcta, embata na montra de uma loja de automóveis. Logo a seguir à loja de automóveis está montada uma esplanada, que ocupa os dois lados do passeio, reduzindo a um estreito corredor o local de passagem.
Exposto o quadro, retomemos o cego. Desceu, como sempre, até àquelas passadeiras que lhe dão, invariavelmente, uma dor de cabeça tremenda. Na primeira das passadeiras, sob os olhares de todos os curiosos que queriam saber como é que ele conseguiria atravessar, olhares que ele, incomodado, sentia, demonstrou uma excelente sensibilidade, esperou que os últimos automóveis, os tais que ainda têm sinal verde, após mudar o dos peões, passassem, e atravessou calmamente. O mesmo sucedeu na segunda. Felizmente, em ambas as passadiras, há um sinal sonoro de aviso que, comentam as más línguas, é extremamente incomodativo e inútil. Claro que, e na impossibilidade de a ver, o invisual ia embater na montra, sob o olhar curioso de uns e trocista de outros. Foi um jovem, com uma t-shirt preta, com as letras "Death is In Us" gravadas nas costas e o logotipo de uma banda amiga na frente que o ajudou, e que lhe poupou o mau momento e a dor do embate. Esse jovem foi olhado com olhares de nojo, com olhares que diziam, para quem quisesse ler, e sem disfarçar: "Que nojo, ele tocou no cego... Ai... Só podia ser um daqueles metaleiros drogados... Ainda apanha a SIDA!". O cego agradeceu e seguiu, desta vez de encontro a uma mesa da esplanada, ocupada por cinco amigos que se calaram, não dando sinal de vida, à espera do choque e do motivo de riso. À espera da dor, física e psicológica, do homem cujo sentido principal desapareceu. Mais uma vez, e perante os sorrisos dos que estavam sentados na mesa, à espera do grande momento, foi o jovem que, dando o braço ao invisual, o desviou do rumo que levava. As expressões dos outros alteraram-se, novamente, para o nojo, nojo de ver um "metaleiro", "satânico", "drogado", "seropositivo" ajudar o cego, e nojo ao pensar que a cegueira se podia transmitir daquele bicho que não vê para o outro...
Finalmente, o cego atingiu a paragem, e o "metaleiro" seguiu, com um sorriso intrigante nos lábios.
O jovem pensou: "Boa! Ajudaste um grande homem, um homem com coragem, com a coragem de se misturar e de arriscar a integridade nesta sociedade corrompida, defensora de valores católicos hipócritas. Ajudaste um homem que pode perfeitamente ser um modelo. Ajudaste um grande Senhor, e ele reconheceu-to com um "obrigado" e um sorriso. Fizeste-o mais feliz, ou, pelo menos, menos triste!"
O jovem, que não é satânico (é ateu), nem drogado (é completamente abstémio) nem seropositivo (tanto quanto sabe), que tem perfeita consciência que a cegueira não se transmite por se pegar no braço de pessoas GRANDES (corajosas, no mínino), e que, para cúmulo, tem a sua visão reduzida a uns (cobiçados por muitos) 10%, o mesmo jovem olhado com nojo, pensou, e pensa, que a sociedade em que vive não presta mesmo, e precisa de ser mudada. O jovem que pensa no catolicismo como mais uma hipocrisía, a hipocrisía suprema. A hipocrisía dos que a praticam, pois, acredita inocentemente o jovem, o deus dos católicos e o profeta Jesus (filósofo, diria o jovem) não queria que a religião fosse isto. Mas é. O jovem, revoltado com a sociedade, é hoje um jovem mais feliz e, já que tem que passar à mesma hora pelo mesmo sítio, vai voltar a acompanhar o invisual. Sempre que possível, com um sorriso, que o cego sente, nos lábios, e extremo prazer em "ajudar o próximo" (não é o que pregam os católicos?).

Pintelho

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